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Opinião 97

Watchmen e o paradoxo do super-herói

Carlos Eduardo Ribeiro


Uma das ‘graphic novels’ mais influentes de todos os tempos, Watchmen nos apresenta uma sombria e inigualável trama. Com uma complexa tragicomédia social, a HQ que se passa nos anos 80 explora um universo no qual existem heróis nos EUA. Entretanto, diferentemente das outras histórias em quadrinhos da época, os heróis não são personagens modelo. Aqui eles se mostram humanizados e desconstruídos, à margem do arquétipo clássico de protagonista.

Não é difícil imaginar o transtorno moral que a existência de super-heróis acarretaria nossa sociedade. Afinal, a figura do herói dos quadrinhos nada mais é do que um justiceiro que combate o crime. E como estabelecido por nossas leis, ser justiceiro é uma transgressão. Contudo, existe uma agenda repressiva que contribui para a divisão
da sociedade entre ‘mocinhos’ e ‘bandidos’, portanto é custoso imaginar um consenso social acerca desse tema. Vide a superficial teoria retributiva ‘malfeitores devem ser punidos por terem cometido maldades’.

Alan Moore, roteirista de Watchmen, nos coloca no cerne dessa questão quando apresenta, logo no início, o personagem Rorschach. Com ilusões paranoicas e um senso rígido de justiça, o justiceiro mascarado investiga a morte de seu ex-parceiro, o Comediante, que junto com ele e mais outros cinco heróis formavam um grupo que combatia crimes nos EUA.

Assim como todos os outros personagens da HQ, Rorschach é complexo. O justiceiro possui um diário e nele escreve sobre a podridão da sociedade. “A imundice acumulada de todo o sexo e matanças que praticaram vai espumar até suas cinturas e todos os políticos e rameiras olharão para cima, gritando ‘salve-nos’ … e, do alto, eu vou sussurrar: ‘não’”. Rorschach é um herói fascista que acredita na violência como chave para a paz. Entretanto, suas tendencias ao fascismo nos fazem refletir: até que ponto os super-heróis clássicos da Marvel ou DC são parecidos com o Rorschach? Afinal, dificilmente vemos os protagonistas dos filmes questionar os meios e os métodos de quem pune e os porquês de punir alguém, ou até mesmo tirar a vida de um indivíduo em busca de uma sociedade mais ‘pura’.

Alan Moore coloca em debate essa discussão e mostra que heróis e vilões podem ser duas faces da mesma moeda. O vigilante que passa seus dias fantasiado perseguindo vilões e bandidos faz isso em busca de justiça, entretanto lei e justiça são coisas diferentes. O que lhes dá direito de praticar ou consentir com assassinatos em massa em nome de uma causa nobre?

Está centralizado em Rorschach o personagem com postura aliada à extrema-direita, à extrema solidão, à impiedade e nele reside um dos fatores principais do texto que incorpora as relações entre o herói dos quadrinhos e o totalitarismo: a negação da realidade e um apelo para soluções simplistas e sensacionais.

Certamente, parece haver uma certa afinidade entre a retórica populista da nova direita e a iconografia dos super-heróis. Parte dos que invadiram o capitólio nos EUA vestiam roupas do Batman e do Thor. No Brasil é impossível não lembrar do boneco inflável do Super Moro nas manifestações em Brasília. Entretanto, uma coisa não levou à outra. Elas só são sintomas de um mesmo problema.

Alan Moore escreveu uma mitologia para cada herói. Dessa forma, desenvolveu suas complexidades nas mais de 400 páginas do HQ. Um deles é o Comediante, ou Agente Blake. O personagem é um soldado impiedoso que não vê problemas em assassinar seus inimigos. Ele nada mais é que o sonho americano tomando forma. Em determinado momento do quadrinho, Dr Manhattan (um dos heróis) ao encontrá-lo durante a guerra do Vietnã diz: “Blake é interessante. Jamais conheci alguém tão deliberadamente amoral. Ele condiz com o clima daqui: a loucura, a carnificina sem sentido. À medida que compreendo o Vietnã para a condição humana, percebo que poucos se permitiram tal compreensão. Blake é diferente. Ele compreende perfeitamente… só não se importa”. O Comediante viu a verdadeira face da sociedade e decidiu virar uma paródia dela, uma grande piada.

Entretanto, é no personagem de Ozymandias que tudo se consolida. Inspirado em Alexandre O Grande, o vigilante é considerado o homem mais inteligente do mundo e, dado tamanha inteligência, percebe que não dá para criar um mundo melhor combatendo bandidos nas ruas. Ao contrário de Rorschach, ele pensa em algo maior. Sua grande solução para salvar o mundo é simples: soltar uma lula gigante, vinda de uma suposta outra dimensão, no centro de Nova York, assassinando milhares de pessoas. Uma farsa capaz de fazer a humanidade se voltar contra um inimigo em comum e esquecer as guerras do cotidiano.

Certamente, todas essas discussões passam por nosso código moral. A ideia frustrada de combatentes do crime é uma mensagem política por si só, cheia de consequências. Portanto, a questão que fica é: os meios maquiavélicos dos personagens são válidos? E mais: quem vigia os vigilantes?