João Pedro dos Santos
Lançado em 1997, o álbum Sobrevivendo no Inferno é o quinto do grupo Racionais Mc’s, formado por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay. O sucesso foi tanto – mais de 1,5 milhão de cópias vendidas – que em 2007 esteve na 14° posição da lista dos cem melhores discos da música brasileira da Revista Rolling Stone Brasil. Além disso, fez parte do repertório de obras obrigatórias para o vestibular da UNICAMP em 2020. Os versos das músicas falam dos desafios de morar na periferia e ser um jovem negro, que encara a violência do Estado e enfrenta a exclusão social.

Com sucessos como ‘Capítulo 4, versículo 3’, ‘Diário de um detento’, ‘Mágico de Oz’ e ‘Fórmula mágica da paz’, a obra ajudou a criar uma nova subjetividade, definindo o sujeito periférico como o morador do subúrbio que assume sua condição, tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir dele. Esse local não designaria apenas pobreza e violência, mas também seria cultura e potência. O grupo musical destacou-se por dar essa voz aos mais pobres. As letras de suas canções eram as armas disponíveis para lutar contra o governo genocida e os playboys, que excluíam essa parte da sociedade.
Os Racionais tem um foco bem delimitado nessa obra, que é construir uma fraternidade de iguais no interior de uma comunidade periférica, a qual afirma-se contra um projeto de Estado que a deseja exterminar. Eles adotam um modelo de representação narrativa, bem como trazem uma multiplicidade de vozes e olhares que oferece uma percepção mais densa da realidade nesses lugares, ao conferir à dispersão das experiências particulares um sentido geral de coletividade. Exemplo disso é a canção ‘Diário de um detento’, que contou com a participação ideológica dos presidiários sobreviventes do massacre do Carandiru, ou seja, o caderno com a letra da música passou pelas celas e foi aprovada pelos encarcerados. “Cada detento uma mãe, uma crença/Cada crime uma sentença/Cada sentença um motivo, uma história de lágrima/Sangue, vidas inglórias, abandono, miséria, ódio/Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo”.
As músicas de ‘Sobrevivendo no Inferno’ não pretendem ser interpretadas como mera narrativa. O texto almeja partilhar uma sabedoria coletiva, pela periferia, integrando-a à vivência dos sujeitos. O álbum é a imagem mais bem-acabada de uma sociedade genocida e racista que se tornou humanamente inviável, e funciona como se fosse um manual de sobrevivência a ela. Por isso, o público que pretende alcançar é o morador da periferia, pois ele sabe exatamente como é vivenciar esse cotidiano. Mas por conta de tanto sucesso, acabou chegando a outras classes sociais. Aos ‘playboys’, como eles mesmo falam.
“Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais / Já sofreram violência policial / A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras / Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros / A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo / Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”.
O início da música ‘Capítulo 4, versículo 3’ é uma amostra da mensagem que o disco quer passar para o público, um entendimento sobre o cotidiano nas favelas e os desafios de ser um jovem negro e pobre na mira do Estado. O grupo nos leva para dentro daquela atmosfera, narrando de forma única como é ser um sujeito periférico no país que adota a violência como ferramenta para gerenciar a miséria.
Nas músicas dos Racionais, os jovens pobres se reconhecem e enxergam a realidade difícil enfrentada no dia a dia. As crônicas escritas por Mano Brown e companhia impactaram na conscientização da população negra do Brasil, que hoje luta pelos seus direitos. O álbum foi um divisor de águas no cenário do rap nacional. A partir dele, esse estilo musical se consolidou como um dos principais movimentos de protesto no país. ‘Sobrevivendo no inferno’ escancara a vida nas periferias, cercada principalmente pela violência policial, exclusão social, racismo, etc., e o grupo abre portas para que muitos outros artistas se inspirem neles e abordem esses temas, ainda presentes na atualidade.
Pode-se dizer que o álbum é uma aula de História e Sociologia, e está entre os melhores da música brasileira. As letras dessa obra são cantadas até hoje por milhares de fãs, principalmente moradores da periferia, pois é um marco no cenário do rap brasileiro. É a forma do sujeito periférico sentir orgulho de ser quem é, de lutar contra a exclusão social e contra a violência do Estado. O trabalho dos Racionais contribuiu na construção de uma voz coletiva potente e por isso são lembrados até hoje como um dos maiores grupos musicais do Brasil.