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Entrevista

A construção do herói por meio da sua jornada

Texto: Amanda Maia | Maria Eduarda Metran de Miranda | Vittória Prado


Heróis e vilões são modelos. São conceitos que nos levam a atribuir valores, pois carregam uma determinada compreensão acerca do que é bom ou ruim. Um dos possíveis campos para entendê-los é a Jornada do Herói, metodologia que procede de dois campos do conhecimento: o da mitologia de Joseph Campbell, e o da psicologia humanista de Carl Gustav Jung.

Para compreender um pouco mais sobre o tema o Projétil foi conversar com Monica Martinez, docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba e líder do Grupo de Pesquisa “Jornalismo Literário e Narrativas de Transformação Pessoal e Social”. Ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (2017-2019), ela é graduada tanto em Jornalismo quanto em Psicologia, tendo doutorado em Ciências da Comunicação e especialização em Psicologia Junguiana.

Foto: Acervo de Monica Martinez

Projétil: O que é ser um herói?
Monica Martinez: O herói é um arquétipo, então querendo ou não em algum momento vamos ser tocados por esse arquétipo. Como tem outros arquétipos que são essas imagens que nos movem, como o arquétipo da mãe, o arquétipo do pai, do sábio, da sábia.
O herói é um desses arquétipos. Quando vemos alguém que faz algo que vai além do que uma pessoa em circunstâncias normais faria, ficamos tocados e aquilo nos inspira, nos mobiliza. Porque, em geral, as pessoas que fazem isso, têm uma recompensa pessoal, que podemos ver nos filmes. O sujeito começa ali e no final vai ficar com a mocinha, a mocinha vai ficar com o mocinho.
Para mim, sempre me chamou mais atenção é que tem um ganho comunitário. O fato do Herói ou da Heroína fazer alguma coisa que não se imaginava, que não seria possível de fazer, causa um bem para ele, mas sobretudo um bem que pode ser para família, pode ser para o pai ou pode ser para a comunidade. Isso vai se alargando em ondas cada vez maiores, se pegarmos um Gandhi, que lutou pela paz, um Papa Francisco, que apesar de todas as restrições têm uma visão mais progressista dentro da igreja. Às vezes, a pessoa que limpa uma praça, ali caladinha, mas que aquilo faz bem para quem vai ali. Tudo isso nos toca em um nível muito profundo.

P: E o que que a gente pode dizer que é a chamada Jornada do Herói?
MM: Joseph Campbell, um mitólogo, estadunidense, nos anos 1940 começa a fazer uma revisão de mitos, lendas e contos de todo mundo e percebe um padrão, que está no livro ‘O Herói de mil faces’. A partir daí ele vai perceber uma estrutura de 17 passos. Tempos depois, no final dos anos 80, um diretor de cinema, George Lucas, que faz a primeira trilogia de Guerra nas Estrelas, convida Campbell para ser seu consultor.
Pode citar aqui qualquer filme. Em geral, temos o protagonista no cotidiano dele, fazendo algo ou com alguém, o que já vai dar uma pista de quais são os limites que aquela pessoa poderia desenvolver. A partir daí temos o chamado. A aventura: vai aparecer algo nesse momento que a pessoa vai se sentir tentada, impelida a fazer. Em alguns casos, tem a recusa, quando a pessoa fala “Não, vai ser muito difícil. Vai ser muito custoso”, e passa para o segundo ato, que é uma série toda que se chama ‘Testes e Aliados’.
Assim, esse protagonista ou essa protagonista, que no começo achava que não daria conta de fazer algo, como por exemplo, alguém que entra em uma faculdade de Jornalismo tempos atrás e trava no começo dizendo “Não vou conseguir, é muita coisa, muita matéria, muito professor doido, muito horário, vou ter que acordar muito cedo, vou ter que trabalhar, vou ter que dormir muito tarde”.
Os próprios testes forjam a pessoa, que passa a ser cada vez mais quem ela é de verdade. Essa é a grande chave, o grande segredo da jornada do herói: a pessoa já era aquilo, mas não sabia ainda, porque não tinha sido colocada à frente daqueles testes. Nesse momento, a pessoa consegue ‘o que foi buscar’. Vamos voltar ao exemplo da pessoa que entrou no Jornalismo: vários desafios, comeu muita marmita antes e depois das aulas, consegue o diploma.
O interessante é que se a pessoa não colocar isso em uso para o bem comum, é como se faltasse uma parte importante que o Joseph Campbell vai chamar de ‘retorno’. Na fase chamada ‘ressurreição’ a pessoa, de um ponto de vista psíquico, terá que abandonar alguma coisa, para assumir esse outro papel. Nas histórias, em geral, a pessoa tem que fazer um ‘sacrifício’, no sentido de abrir mão de alguma coisa, para completar essa etapa.
E aí tem o retorno. É como se a pessoa fizesse uma espiral e voltasse no mesmo ponto que ela estava. Vamos supor a pessoa no final, ali, formada, agora com canudo em mãos. E aí começa outra fase, outra etapa, porque ela é elíptica, a gente vai subindo na vida em espiral. Até o que o Campbell chamava de ‘Saída’, quando a gente compre o que a gente tem que cumprir aqui e vai para… Aí vai depender da crença de cada um né, mas vou chamar ‘o outro lado’.

Monica Martinez e o pesquisador Tim Voss na conferência de abertura do encontro anual da SBPJor em 2019 – Foto: Ana Luiza Tanno / SBPJor


P: Como que a gente pode estabelecer a diferença entre o herói do senso comum e um herói do contexto trabalhado na Jornada do Herói? Ou eles são a mesma pessoa?
MM: São a mesma pessoa. São os indivíduos, os seres humanos. Nos filmes que representam heróis, a contraparte humana geralmente é frágil. O Homem Aranha, por exemplo, é um fotógrafo todo tímido. O próprio Clark Kent é tímido também, tem vergonha de falar que gosta da jornalista. Então, assim como o arquétipo, todos nós somos tocados por ele. O que vai variar são as histórias, os contextos, a dimensão em que aquilo vai estar acontecendo.
A figura do vilão, na jornada, é aquele que está ali para o bem do herói, porque ele vai tocar no pontinho mais nevrálgico do herói. Pode perceber: nos filmes que o herói é fraco, ele acaba tendendo a ser um filme ‘chocho’, porque parece que aquele herói não é muito testado.
O Batman, por exemplo, tem vilões tão encantadores – como o Coringa – que acabam ganhando um filme próprio. É bem interessante esse caso, o filme do Coringa. Quando mapeamos a história dos vilões têm justificativas para que eles tenham feito o que fizeram. Aquele ser humano (Coringa) foi traído em todos os níveis, desde os pais biológicos, da mãe que adotou, do sistema social, dos psicólogos que o estavam atendendo, dos empregadores, etc. E ele se descobre naquela figura do vilão, que por ser tão consistentemente construído vai pegar o Batman nos pontinhos mais difíceis. Esses personagens, que estão na estrutura narrativa da Jornada do Herói, são interessantíssimos e acontecem na vida real, estão presentes em todas as esferas, às vezes nas esferas bem altas do Poder.

P: E o vilão? Ele também passa por essa jornada? Como é que ele é construído? 
MM: Uma coisa que eu gosto da jornada é que se a gente contasse o caso do Coringa, que é a história de vida a partir do vilão, tem essa jornada também: é da infância, dos anos duros. Acho que o Coringa ilustra bem. Ele era um cara ‘de boa’ no começo. Se ele tivesse achado alguém, feito uma escola, um professor que o acolhesse, que fosse ajudando a se inserir, talvez ele fosse alguém maior do que o próprio Batman. Mas o fato da pessoa se sentir rejeitada, não pertencente, se já tiver um ego com fissuras, com fraturas, acontece o que a gente chama ‘ser tomado pelas sombras’. Temos muita sorte, porque temos uma família, que bem ou mal, com todos os perrengues – ninguém é perfeito – nos deu amparo, alimento, teto, possibilidade de estudar, e de achar nosso espaço.
Do ponto de vista psicológico, o vilão é aquele que vai testar as fragilidades do Herói, vai fazer com que o herói, seja mesmo um herói. Por isso é um personagem tão importante. Para muitas pessoas a pandemia foi um vilão, testou as pessoas a terem resistência, a fazer coisas de uma forma diferente. O vilão pode ser um indivíduo, um grupo social, ou uma situação, dado o contexto.

P: Qual o papel das diversas mídias na construção de narrativas determinantes para heróis ou vilões?
MM: Muita gente tem preconceito com o sistema midiático, sobretudo jornalístico, e acaba se fechando em verdades absolutas de grupos de WhatsApp. O sistema midiático, inclusive nos jornalísticos, tem essa pluralidade. É como antigamente: pegava-se o jornal em papel, ia passando por vários cadernos, às vezes nem gostava de esportes – meu caso por exemplo – mas às vezes você começava a ler uma história de vida de uma pessoa ligada aos esportes. Aquilo fisgava e você lia até o final. O papel das mídias na construção de heróis e vilões vai nesse sentido de que quanto mais pluralidade a gente tiver melhor para nossa criatividade.

P: Você fala muito em ‘mitos’. O que é um mito? Quais são os mitos contemporâneos? Que relação esses mitos têm com a criação de heróis e vilões?
MM: Os mitos eram narrativas sagradas. Não importava se tinham acontecido de verdade ou não. O que importava é que aquela era uma história pedagógica, para ensinar e orientar o indivíduo a como caminhar na sua vida. Tinha desde a função sociológica, de se comportar em sociedade, até a função do mistério, do ponto de vista cósmico.
O mito é uma história bem organizada. Por meio de uma narrativa cada pessoa vai ouvir e vai tirar alguma coisa que faz sentido para aquele tempo e espaço. Cada pessoa vai ouvir uma história, uma narrativa mítica, e vai entender alguma coisa, que pode variar. Como se fosse uma luva, que vai calçar cada mão de uma forma diferente.
Quando se começa a desenvolver a filosofia, na busca de uma forma mais lógica de compreender o mundo, esses mitos passam a ser entendidos como histórias inventadas. É comum falar “isso é um mito” no sentido de que é uma falácia e foi construído coletivamente. A narrativa faz muito sentido para aquela comunidade e traz para a vida do indivíduo o contexto daquela sociedade.

P: Como você analisa a criação de heróis pelas mídias sociais?
MM: É um ponto bem nevrálgico e se transcende a partir de uma visão social. Quando algo ou alguém desperta muita atenção, do ponto de vista psicológico, significa que foi tocado algum arquétipo que naquele momento era importante. Isso vai acontecer numa perspectiva que pode ser uma comunidade ou pode atingir números maiores. Se voltarmos no que é considerado um dos exemplos mais dramáticos, Hitler, percebe-se que nos anos 1930 a Alemanha estava se recuperando de uma guerra mundial, com uma economia muito ruim. Aparece, então, alguém que vai reencarnar um imaginário de um Wootan, um Deus Guerreiro, e ativa uma camada muito profunda do inconsciente daquele povo alemão. E acaba desembocando no que desembocou. Da mesma forma que existem exemplos negativos, existem exemplos positivos. Malala era uma mocinha que estava num dado contexto e acaba sendo vítima de uma visão fundamentalista que entende que as mulheres não precisam de educação. Ao se tornar uma vítima daquele movimento e ir para a Inglaterra, se formar em Oxford, ela acaba sendo porta-voz dos direitos humanos em uma perspectiva feminina da importância da educação. São dois exemplos que tocam esse inconsciente e vão ativar uma parte muito importante do ser humano.
É importante não se deixar levar pelo efeito manada, não engolir as coisas sem tentar usar a razão. No ano que vem vai ser vital para a gente usar nosso discernimento. Vai ser um ano muito importante para nós como brasileiros, por meio das eleições, para que a gente escolha os heróis certos, as heroínas certas ou que pelo menos beneficiem o maior número de pessoas de uma forma mais justa possível.

P: Na prática, quais circunstâncias ajudam a criar um herói ou vilão? A morte dessa pessoa, o sofrimento, a exposição midiática, as conquistas, contribuem ou mesmo constroem um herói ou vilão?
MM: É tão relativo essa questão de herói, porque às vezes o herói está no cotidiano, fazendo seu trabalho caladinho. Vamos pensar uma merendeira de uma escola, que faz aquilo com amor, aquela comida gostosa, e aquela criançada vai comer. Aquilo vai fazer toda a diferença. Talvez ela nem chegue a ser louvada como heroína, mas ela está cumprindo o papel social que ela escolheu. E às vezes tem esses heróis que são maiores. O melhor herói é aquele que, chamando atenção ou não, consegue causar um bem para o maior número de pessoas.

P: Podemos dizer que todos passam pela jornada do herói? A história pessoal de cada um interfere nesse processo?
MM: Com certeza. Às vezes de forma mais ou menos consciente. A história pessoal de cada um é esse processo, a narrativa é o processo. E do ponto de vista psicológico, a forma como a pessoa conta a narrativa vai fazer toda a diferença. Tanto para ela mesma quanto para os outros.
Imagine uma pessoa que conseguiu construir sua casa, tem o seu pão na mesa, faz o seu ritual de agradecer o que conseguiu e passa essa imagem digna para os filhos. Passa os valores bons. Por fim, vai criar uma narrativa de dignidade.
Uma outra pessoa pode olhar essa mesma casa simples de alvenaria e se imaginar morando em um barraco, e se sentir muito mal por conta daquilo. E fica tecendo uma narrativa de que não deu certo, de que é infeliz. Passar isso para os filhos tem uma carga importante.
Se os mitos são narrativas sagradas, a forma com que a gente conta essas narrativas faz toda a diferença. Não é tudo que vai dar certo na nossa vida, a partir das expectativas que a gente tem.
Quando a gente vai escolher um personagem para nossa matéria, temos em nossas mãos essa decisão. Podemos construir de uma forma rica, com muitas vozes, ou podemos alimentar esse arquétipo da vítima. Assim, a pessoa que ler vai continuar achando que é uma vítima. Não sei se isso é bom. Talvez seja melhor a gente alimentar o indivíduo no sentido de que ele pode transformar a sua realidade a partir das histórias que ele narra.

P: Então, de uma forma ou de outra, todos somos heróis?
MM: Sim. E todos somos vilões ao mesmo tempo. Temos luz e sombras dentro de nós. Vamos acabar pisando no formigueiro e matando algumas formiguinhas querendo ou não. Às vezes sem nem perceber, acontece.